A América Latina e o Caribe não podem desperdiçar o bônus econômico e político inédito acumulado nesta crise, como uma das regiões menos afetadas pela ressaca de ajustes traumáticos cobrados nesse momento do Leste Europeu e da Grécia, mas que também ameaçam a Península Ibérica. Mais que o desfrute inercial de um ambiente de estabilidade democrática e relativa solidez econômica, essa é a hora de aprofundar acertos comprovados e, sobretudo, mapear flancos sensíveis a uma ação de governo, capaz de reforçar a imunidade estratégica da economia e propiciar avanços sociais no menor espaço de tempo. Um dos nomes desse atalho é “fortalecimento da agricultura familiar” e, com ela, o resgate de alimentos originários da região, progressivamente substituídos em vários países, em especial nos mais pobres, por alimentos importados das nações ricas.
A necessidade de apoiar a agricultura familiar para garantir a segurança alimentar foi uma das conclusões da 31ª Conferência Regional da FAO, realizada no mês passado no Panamá, que reuniu 15 ministros e vice-ministros de Estado e representantes de 26 países da América Latina e Caribe, além de observadores de outros governos, da sociedade civil e de organismos internacionais. A pedido dos governos, a FAO deverá reforçar seu apoio a políticas públicas para aumentar a produção da agricultura familiar; promover sua integração em cadeias produtivas; apoiar a comercialização das colheitas e desenhar mecanismos de financiamento associados ao uso de práticas de manejo que assegurem a sustentabilidade social, econômica e ambiental.
O reposicionamento da agricultura e da segurança alimentar no centro dos programas nacionais e regionais de desenvolvimento foi saudado no encontro pelo diretor-geral da FAO, Jacques Diouf, como um fator que permite olhar a próxima década com maior otimismo. Não se trata de mera retórica protocolar, mas a constatação de uma mudança política atestada pelas leis de segurança alimentar já aprovadas ou em tramitação em mais de 15 países da região. Tudo isso ajudará a avançar novamente nessa frente, já que bastaram três anos de instabilidade internacional para que perdêssemos ganhos obtidos na última década e meia de combate à fome.
Esse efeito sanfona deve parte de seu impulso à paradoxal negligência com aquele que é o ator coletivo mais importante do campo regional: o agricultor familiar que reúne 70% das propriedades, 40% da produção e garante duas de cada três ocupações rurais na média regional. Estudos feitos pela FAO e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em 2007, confirmaram seu papel insubstituível no abastecimento de até 80% da cesta básica em regiões e núcleos populacionais de menor renda. Para uma economia exportadora de alimentos, como é o caso da latino-americana e caribenha, a incapacidade de garantir uma dieta adequada à toda população é sempre uma lembrança incômoda da perversa desigualdade que ainda comanda o seu metabolismo produtivo.
Um ponto de solda desse gargalo está justamente nas características assimétricas da modernização agrícola assistida nas últimas décadas, que ampliou em 30% a produção e disseminou as relações de assalariamento no campo, mas que não reduziu a pobreza rural de maneira proporcional.
A queda de 50% nas cotações das commodities durante a crise, associada a uma contração mundial no financiamento à exportação – que poderá se repetir na esteira do ajuste europeu – evidenciou a fragilidade de uma arquitetura incapaz de prover a segurança alimentar até mesmo no campo. Metade da população rural latino-americana e caribenha subsiste abaixo da linha da pobreza, enquanto se desperdiça a capacidade produtiva de milhões de famílias para instaurar uma dinâmica social e econômica de características opostas.
Para resgatar o potencial da agricultura familiar e reverter esse quadro não basta fomentar a produção. Na maioria dos casos, trata-se de convergir esforços para programas unificados de reordenação territorial, a exemplo da experiência brasileira com o Territórios da Cidadania.
Dois obstáculos a serem atacados: a falta de acesso a estruturas de financiamento e comércio que assegurem o capital de giro para o plantio e, sobretudo, garantias de venda e preços mínimos na ocasião da colheita.
Uma pesquisa recente do IPEA constatou que, no caso brasileiro, a maioria dos agricultores familiares ainda planta sem ter um destino previamente negociado para o produto, tornando-se reféns de intermediários e atravessadores. Em contrapartida, 20% dessa colheita é vendida diretamente ao consumidor final, reafirmando a sua importância no abastecimento dos mercados mais distantes onde se agigantam a pobreza e a fome. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), um braço estruturante do Fome Zero, é um antídoto cuja multiplicação contempla as urgências regionais. O PAA estreita os vínculos entre produção e demanda local permitindo modalidades de aquisição direta e antecipada da cesta básica para consumo em núcleos em situação de insegurança alimentar, programas sociais e merenda escolar. Essa ponte firme de ação pública entre a oferta e a demanda propicia uma alavanca capaz de impulsionar a transição de segmentos que hoje – se muito – subsistem junto à terra, à condição de geradores de excedente para mercado.
A 31ª Conferência Regional da FAO enfatizou a necessidade de que os países recuperem sua capacidade soberana de produzir alimentos para atender à demanda da população. Aos que enxergam nesse movimento uma nódoa antimercado, vale lembrar a declaração do ex-presidente norte-americano Bill Clinton à Comissão de Relações Exteriores do Senado, em março deste ano, pouco antes de desembarcar em Porto Príncipe.
O governo Clinton (1993-2001) foi um dos que mais pressionaram o Haiti a eliminar tarifas para liberar a importação de arroz subsidiado dos EUA – o que destruiu a produção local e padronizou uma dieta com um grão de qualidade inferior ao produto tradicional. O mecanismo nefasto deixou o Haiti ao sabor das oscilações especulativas nas bolsas de mercadorias, mas revelaria efeitos ainda mais perversos à segurança alimentar, após o terremoto de 12 de janeiro. Em tom de mea culpa, Clinton admitiu: “Aquilo pode ter sido bom para os fazendeiros do Arkansas, mas foi um erro”.
Fonte: AgroNotícias