Por Washington Novaes
Em meados de maio, Jacques Diouf, o secretário-geral da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), órgão da ONU, lançou o manifesto 1billionhungry (1 bilhão de famintos) e pediu que todas as pessoas no mundo o assinem, para mobilizar governos e instituições e forçá-los a assumir programas que pelo menos reduzam esse “quadro vergonhoso” e levem ao cumprimento dos Objetivos do Milênio. E um deles é exatamente até 2015 reduzir à metade aquele número. Mas é muito pouco provável que a meta seja atingida, não só porque o contingente de pobres no mundo tende a aumentar com a crise econômica e o crescimento da população (mais 2 bilhões a 2,5 bilhões de pessoas até 2050), como porque a própria FAO prevê que o preço dos alimentos, principalmente trigo, outros cereais, produtos lácteos e azeites, tende a crescer entre 15% e 45% nesta década ? e os pobres não terão recursos para acompanhar a alta.
Na verdade, o problema não está só na quantidade de alimentos ? hoje já há produção suficiente para todas as pessoas, mas não há poder de compra equivalente (de qualquer forma, estima a FAO que a produção precisará aumentar 70% até 2050). As estatísticas globais comprovam isso. Segundo pesquisa do Boston Consulting Group (Estado, 11/6), a parcela mais pobre da população mundial, que é a imensa maioria, respondeu por apenas 38% do movimento econômico global de US$ 1,33 trilhão/ano, quando apenas 127 mil famílias, todas com patrimônio acima de US$ 1 milhão em 2009, responderam por 44% do movimento. As famílias milionárias (11,2 milhões), diz a pesquisa, embora sejam apenas 0,0016% da população mundial, detêm 55% da riqueza mundial. E 4,7 milhões delas estão nos Estados Unidos.
As questões do trabalho, pobreza e renda estão hoje no centro dos debates no Brasil, principalmente nas discussões sobre as eleições. E qual será a nossa situação? Diz a Fundação Getúlio Vargas que entre 2003 e 2009 a pobreza no País caiu 43%, porque 31,9 milhões de pessoas ascenderam às classes A, B e C. Para tanto contribuíram melhoras na renda do trabalho (67%), “progressos sociais” (17%) e “benefícios previdenciários” (15,5%). No atual governo federal, o número de pobres reduziu-se em 19,4 milhões. Mas ainda são pobres 29,9 milhões (16% da população), membros de famílias em que a renda per capita está abaixo de R$ 137 mensais; 67,7% das pessoas que trabalham recebem, no máximo, dois salários mínimos mensais (R$ 1.020).
Para o sociólogo Jessé Souza, da Universidade Federal de Juiz de Fora (Folha de S.Paulo, 24/5), autor de A Ralé Brasileira, “a desigualdade no Brasil é abissal”, tendo em vista a parcela da população que “vive como subgente”. E é uma situação que, a seu ver, “o Bolsa-Família, sozinho, não tem como reverter”, embora beneficie 12,4 milhões de famílias, que somam quase 50 milhões de pessoas. No Nordeste, por exemplo, os benefícios do programa não superam R$ 70 mensais, em média. E no Norte não é diferente. Nessas regiões, a renda média é de R$ 65,29, na última, e R$ 66,20 na primeira ? e ainda assim o programa aumentou em 48,74% a renda em toda a região. Mas, reconhece o próprio Ministério do Desenvolvimento Social, 2 milhões dos 12,4 milhões de famílias que recebem o benefício “são extremamente pobres”.
O economista Márcio Pochmann, do Ipea, acrescenta mais um complicador: o desemprego no Brasil “é jovem”, porque um em dois desempregados tem menos de 25 anos; e 80% dos desempregados (7 milhões de pessoas nas seis maiores regiões metropolitanas) não têm experiência profissional, são de “baixa qualificação”. Não por acaso, o ministro Carlos Lupi, do Trabalho e Emprego, acha que é preciso qualificar 4,5 milhões de pessoas por ano para evitar um “apagão da mão de obra” que se prenuncia na retomada econômica. Mas também aí há avanços, porque pela primeira vez o IBGE registra que nas áreas metropolitanas 50% das pessoas que trabalham têm carteira assinada. Provavelmente é uma das razões que levaram a renda média das famílias a aumentar 10% em 2009 e chegar a R$ 1.285 (pouco mais de US$ 700).
Há visões diferenciadas, como a que expõe Plínio de Arruda Sampaio na revista Problemas Brasileiros (maio/junho 2010), da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Com longa atuação na política ? foi deputado federal em 1962, exilado político, membro do PT a partir de 1980, coordenador do Plano Nacional de Reforma Agrária (2003), em 2005 ajudou a fundar o PSOL e por esse partido é candidato à Presidência da República ?, faz críticas duras aos governantes. Na sua visão, o País tem dois problemas centrais: dependência externa e “a miséria do povo”, que não é apenas econômica, mas também “física, intelectual e cultural”. Mas, ainda assim, “o povo está contente”, graças, principalmente, a 50 milhões de pessoas que “recebem um pequeno auxílio” (o Bolsa-Família), “com o qual fingem que comem”. Admite, porém, uma mudança: “Pelo menos fingem que comem; antes, nem fingiam.” A eles se somam, a seu ver, outros 20 milhões “que ascenderam a um tipo de consumo que era considerado dos ricos, que é o da linha branca de eletrodomésticos”.
Arruda Sampaio vê um paradoxo. Suas pesquisas dizem que “todos acham que está melhor”, mas “em termos individuais a resposta é negativa”. A aparente melhora, na sua opinião, é uma “realidade superficial”, porque, na verdade, “a burguesia está nadando de braçada. Ela encontrou o socialista que pediu a Deus, que é Lula, porque ele traz o povo tranquilo e segue a política econômica que interessa à burguesia”. Por isso, “o homem do povo não admite, não pensa em alternativa, é incapaz de imaginar outras possibilidade de organizar a vida brasileira”. O ex-petista, em síntese, quer “reinventar o socialismo”.
É mais uma visão desse complexo quadro político-econômico-social que antecede as eleições de outubro. E que desafia a cabeça dos planejadores de campanhas.
Fonte: O Estado de S.Paulo